Avanço da doença em adultos jovens exige novas estratégias de prevenção, diagnóstico e cuidado
Entre reuniões por videoconferência, treinos na academia e a busca constante por produtividade, há um dado que tem chamado a atenção de oncologistas no mundo todo: adultos jovens, em especial os millennials (nascidos entre 1981 e 1996), estão sendo diagnosticados com câncer com uma frequência maior do que a observada em gerações anteriores na mesma idade.
Dados compilados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela American Cancer Society (ACS) mostram que, entre 1990 e 2019, os casos de câncer em pessoas com menos de 50 anos aumentaram cerca de 79% globalmente, enquanto a mortalidade nessa faixa etária cresceu 28%.
“Estamos diante de uma mudança significativa no perfil epidemiológico do câncer”, afirma Carlos Gil Ferreira, oncologista e diretor médico da Oncoclínicas&Co e presidente do Instituto Oncoclínicas. “A doença, que historicamente era associada ao envelhecimento, está se tornando cada vez mais frequente entre adultos jovens. Isso tem implicações clínicas, sociais e emocionais importantes.”
Estilo de vida, ambiente e microbiota: um cenário multifatorial
A ciência não aponta um único culpado, mas sim um conjunto de fatores ambientais e comportamentais que se intensificaram nas últimas décadas. Entre eles:
Má alimentação, com alto consumo de ultraprocessados
Obesidade, um fenômeno que começou ainda na infância para boa parte dessa geração
Sedentarismo
Consumo de álcool, muitas vezes em episódios intensos e concentrados
Privação crônica de sono
Exposição a poluentes e agentes químicos
Alterações da microbiota intestinal
“A carga ambiental e o estilo de vida contemporâneo parecem ter influência direta na mudança desse padrão”, explica Carlos Gil. O câncer colorretal é um exemplo emblemático: sua incidência entre jovens tem crescido de forma expressiva e está fortemente associada à dieta, obesidade e inflamação intestinal de baixo grau.
Outro ponto de atenção são os cânceres relacionados a infecções virais, como o HPV, que está ligado ao câncer de colo do útero e da cavidade oral — e pode ser prevenido por meio da vacinação, ainda subutilizada em muitas regiões.
“A sala de espera está mudando”: o alerta dos consultórios
Nos consultórios e centros oncológicos, essa mudança não é percebida apenas em números de relatórios epidemiológicos: ela aparece, de forma concreta, no perfil das pessoas que chegam para consulta.
“Não é raro hoje atender pessoas na faixa dos 30 ou 40 anos com tumores que, no passado, víamos quase exclusivamente após os 60”, afirma Cristiano Resende, oncologista da Oncoclínicas. “E isso não significa que estamos fazendo mais exames; significa que estamos, de fato, diagnosticando mais casos.”
É especialmente o caso dos tumores mamários. “Nos últimos anos, temos visto um aumento expressivo de diagnósticos de câncer de mama em mulheres com menos de 40 anos. São pacientes em plena fase produtiva da vida, muitas vezes construindo carreira, família ou planejando ter filhos. O diagnóstico chega de forma abrupta e provoca uma ruptura significativa na rotina, nos planos e nas perspectivas dessas mulheres”.
O fenômeno, segundo Resende, é multifatorial. “Não existe uma única causa. Estamos falando de uma combinação de mudanças no estilo de vida, maior exposição hormonal, obesidade, sedentarismo e também avanços no diagnóstico, que hoje nos permitem detectar tumores mais cedo. Além disso, o componente genético tem sido identificado com mais frequência, porque temos mais acesso a testes que antes não estavam disponíveis”.
O tratamento nessa fase da vida envolve dilemas específicos: preservação de fertilidade, afastamento laboral, cuidado de crianças pequenas, impacto financeiro e emocional na família. Além disso, a autoestima e a percepção de identidade, frequentemente vinculadas à produtividade e à imagem corporal, são abaladas de maneira intensa.
Essa mudança também pressiona o sistema de saúde a rever suas prioridades. Protocolos de rastreamento, por exemplo, historicamente foram estruturados pensando na população acima de 50 anos. Para Resende, isso já não corresponde à realidade: “Precisamos olhar para essa geração e perguntar: estamos detectando tarde porque estamos procurando tarde?”.
Um desafio duplo: detecção e prevenção
Enquanto o setor privado no Brasil já dispõe de terapias avançadas, como imunoterapia e medicina personalizada, o acesso no SUS ainda é desigual, o que pode comprometer resultados especialmente para jovens, cujos tumores tendem a ser mais agressivos.
Para enfrentar essa curva ascendente, os especialistas defendem:
Revisão de protocolos de rastreamento, especialmente para câncer colorretal
Vacinação ampla contra HPV
Políticas públicas de combate à obesidade
Promoção de hábitos saudáveis desde a infância
Atenção às queixas gastrointestinais persistentes em jovens
“O câncer em adultos jovens não pode mais ser tratado como exceção”, afirma Cristiano Resende. “É uma realidade em ascensão. Precisamos falar sobre isso e agir”, finaliza.
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